domingo, 15 de setembro de 2013

FREI TITO

Frei Tito: história de luta do religioso
cearense contra a ditadura militar no Brasil 
Há quase 40 anos, em 1983, quando já vivíamos o processo de redemocratização, seu corpo foi trazido ao Brasil. Sua morte foi em 1974, aos 31 anos... 
Tito de Alencar Lima (Frei)    
Frade dominicano.
Nascido em Fortaleza/CE no dia 14/09/45, filho de Ildefonso Rodrigues de Lima e Laura Alencar Lima.
Estudou em Fortaleza com os padres jesuítas. Foi dirigente regional e nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Em 1965, ingressou na Ordem dos Dominicanos, sendo ordenado sacerdote em 1967, e também foi aluno de Filosofia da USP.
Militante da Ação Estudantil Católica, foi seu coordenador para o Nordeste. Foi preso em 1968, sob a acusação de ter alugado o sítio onde se realizou o Congresso da UNE, em lbiúna.
Preso novamente em 4 de novembro de 1969, em companhia de outros padres dominicanos porque acusados de terem ligações com a ALN e Carlos Marighela.
Frei Tito foi torturado durante 40 dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury. Transferido depois para o Presídio Tiradentes, onde permaneceu até dia 17 de dezembro. Nesse dia, foi levado para a sede da Operação Bandeirantes (DOI-CODI/SP), quando o Capitão Maurício Lopes Lima, disse-lhe: “Agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. E foi o que ocorreu. Torturado durante dois dias, pendurado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos na cabeça, órgãos genitais, nos pés, mãos, ouvidos, com socos, pauladas, “telefones”, palmatórias, “corredor polonês”, “cadeira do dragão”, queimaduras com cigarros, tudo acompanhado de ameaças e insultos. A certa altura, o Capitão Albernaz ordenou-lhe que abrisse a boca para receber a hóstia sagrada, introduzindo-lhe um fio elétrico que queimou-lhe boca a ponto de impedi-lo de falar.
Frei Tito foi deixado durante toda uma noite no pau-de-arara e, no dia seguinte, tentou o suicídio com uma gilete, sendo conduzido às pressas para o Hospital do Exército do Cambuci, onde ficou cerca de uma semana sob tratamento médico sem, contudo, deixar de ser submetido a tortura psicológica constante.
Banido do país, em 13 de janeiro de 1971, quando do seqüestro do embaixador da Alemanha no Brasil, viajou para o Chile e depois para a Itália e a França.
Após algum tempo, instalou-se na comunidade dominicana de Arbresle, tentando desesperadamente lutar contra os crescentes tormentos de sua mente, abalada profundamente pela tortura. Já no exílio, foi condenado pela 2ª Auditoria a pena de 1 ano e meio de reclusão, em 23 de fevereiro de 1973.
No dia 7 de agosto de 1974, com 31 anos de idade, Frei Tito enforcou-se, pendurando-se em uma árvore. Foi enterrado no Cemitério Dominicano de Sainte Marie de la Tourette, próximo a Lyon, na França. Em 25 de março de 1983, seus restos mortais foram trasladados para o Brasil, acolhidos solenemente na Catedral da Sé, em São Paulo, com missa rezada por D. Paulo Evaristo Arns e enterrado no jazigo de sua família em 26/03, em Fortaleza
Imagens do filme Frei Tito e Carlos Marighella e música Sentinela - Milton Nascimento e Nana Caymmi*

“... seus propósitos inabalados por ter lutado com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira, não só pela reforma agrária, mas, pela reforma tributária, ...pela reforma econômica, pela justiça social...”
TV Globo - Linha Direta - Justiça.
Reconstituição da história de Frei Tito.
Dia 16 de novembro de 2006, às 21h45.
A agonia de Tito
O programa Linha Direta - Justiça desta quinta-feira vai retratar a história de luta, fé e sofrimento do ativista religioso cearense Frei Tito, interpretado pelo ator Guilherme Piva
O próximo Linha Direta - Justiça vai ser especial. O programa vai exibir a história de Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, ativista religioso cearense que entrou para a história política do País, por ter lutado pelos direitos humanos durante o árduo período da ditadura militar. Preso e torturado, mesmo depois do exílio, nunca conseguiu se livrar das marcas e do sofrimento pelos quais passou. Mesmo com tratamento psiquiátrico, ele não desvinculou-se do passado e se suicidou na França, em 1974. O drama de Tito será recontado no especial, em que o ator Guilherme Piva interpretará o frade.
Nascido em Fortaleza, de uma família de 15 irmãos, Tito foi dirigente nacional e regional da Juventude Estudantil Católica. Em 1965, tornou-se frade dominicano. Depois se mudou para São Paulo, estudou Ciências Sociais na USP, e começou a se engajar aos movimentos de resistência ao regime. Foi um dos organizadores do famoso Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Ibiúna (SP), onde acabou sendo preso.
Frei Tito foi torturado, ao lado de mais 12 frades dominicanos, durante 40 dias. Na reconstituição, o delegado e chefe da equipe que os torturou, Sérgio Fleury, será vivido pelo ator Ísio Ghelman. Depois de todo o sofrimento que passou, conseguiu que sua história fosse divulgada através de uma carta. A denúncia correu por diversos jornais, em todo o mundo. Banido do País, em 1971, viajou para o Chile e para a Itália. Em Roma, ele foi rejeitado pelos religiosos, que o consideravam subversivo. Só foi conseguir asilo num convento em L'Abresle, na França.
Dominado pela tristeza que o abatia, pelas recordações das violentas e humilhantes torturas que sofreu, Tito permanecia abalado. Os amigos ficavam preocupados, sobretudo com os relatos. O frade dizia que a imagem do delegado Fleury aparecia por todas as ruas e janelas. Perturbado com tudo isso, ele se enforcou aos 31 anos de idade, em 1974. Seu corpo só foi trazido ao Brasil em 1983, quando o já vivíamos o processo de redemocratização.

Uma história de Frei Tito de Alencar

'Morrer para viver"', biografia do cearense Frei Tito de Alencar, escrita pelo o holandês Ben Strik ganha tradução. O livro lançado em outubro de 2010, no Museu do Ceará, com a presença do autor

Tito de Alencar Lima contava 28 anos quando morreu na pequena Évreux, nos arredores de Lyon, na França. O Brasil estava longe, mas o frei dominicano carregava na bagagem a memória dos sofrimentos que passara no País. Corria no ano de 1974, e com ele se chegava à triste marca de uma década do regime militar brasileiro. O sofrimento ao qual Frei Tito havia sido submetido - variados tipos de tortura física e psicológica - ainda era imposto a muitos dos opositores do regime. Ainda atormentado pelas dores da tortura nas mãos dos militares, Frei Tito deu fim a sua própria vida em 10 de fevereiro daquele ano. Registrou num bilhete: "só posso viver ser morrer".
Essa história, mais um dos dramas políticos do período negro da Ditadura Militar, é recontada no livro "Morrer para viver". Mais extensa biografia daquele que é considerado um dos mártires da ditadura brasileira, a obra foi escrita pelo holandês Ben Strik. Lançado originalmente em holandês em 2005, o livro acaba de ganhar tradução para o português. Strik lança seu livro em Fortaleza, na terra de Tito, amanhã, às 18h30, no Museu do Ceará.
O livro, impresso na Holanda, traz mais de 700 páginas de texto, com ilustrações que mostram cenas do período em que o dominicano esteve vivo, e de repercussões a sua morte, que chegam aos dias de hoje. Strik não se prende apenas aos episódios da vida de Frei Tito. Sua reconstituição é panorâmica, procurando dar uma ideia do clima político do País, entre os anos 1960 e 1970. Veterano da II Guerra Mundial, onde combateu os nazistas, Strik viveu no Brasil entre 1950 e 1972, trabalhando com povos indígenas e camponeses. Foi embora por conta do clima repressivo.
Convergência de dramas
Prefácio assinado por Frei Betto
O olhar de estrangeiro de Strik, sua preocupação em apresentar ao leitor europeu a pouco conhecida história política brasileira, dá ao livro um tom didático. Isso faz com que, apesar da profundidade do texto, ele seja acessível mesmo para aqueles que não estão familiarizados com a história do religioso cearense. O prefácio do livro é assinado por Frei Betto, dominicano brasileiro, amigo e companheiro de lutas políticas de Tito. Betto é o autor do best-seller "Batismo de Sangue" (1982), que conta a história do envolvimento de um grupo de freis dominicanos na luta contra a Ditadura, e que termina com a violenta repressão que levou Tito à tortura, à morte longe de casa, mas sem esquecer o que sofreu nas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933 - 1979). O corpo de Frei Tito só retornou ao Brasil em 1983, às vésperas da abertura política, e quando a anistia de 1979 já havia permitido o retorno ao País de muitos de seus companheiros de ideologia.
MORRER PARA VIVER 
A Luta de Tito de Alencar Lima contra a Ditadura Brasileira
De Ben Strik, com prefácio de Frei Betto, 719 páginas e mais de 200 ilustrações. 
“Morrer para Viver” descreve a biografia de Frei Tito de Alencar Lima desde seu nascimento em 1945 até sua morte na França em 1974. Sua maneira de pensar, seus ideais. Sua luta contra a ditadura e seu exílio. Seu sofrimento depois das torturas físicas e mentais e sua morte. Para compreender seus motivos o livro esboça a negativa histórica do Brasil desde 1500 até hoje como a causa de seu idealismo fabuloso.
Memorial Frei Tito - Museu do Ceará
HISTÓRIA DE FREI TITO FOI RECONTADA EM OUTROS LIVROS E EM PROJETOS DE DIVERSAS LINGUAGENS

Publicado pela primeira vez em 1982, "Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella" logo ganhou traduções para o italiano (1983) e para o francês (1984), onde se chamava "Os irmãos de Tito". A obra de Frei Betto (foto) não contava apenas a história do cearense, mas do grupo de dominicanos engajado na luta contra a Ditadura Militar do qual ele fez parte. Betto relata o sofrimento de seus companheiros Frei Ivo e Frei Fernando, também torturados para entregar aos militares a localização do líder guerrilheiro Carlos Marighella (1911 - 1969). Enquanto Tito se manteve calado, seus companheiros não suportaram a violência dos torturadores. Já Tito não se livrou das marcas deixadas pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. O livro ganhou uma nova edição em 2007, com a adição de novos dados sobre o assassinato de Maringuella.

Em julho de 1992, estreou em Fortaleza "Frei Tito, vida, paixão e morte" (foto), peça de teatro com texto do dramaturgo cearense Ricardo Guilherme, com direção de B. de Paiva. O texto foi encenado por atores de uma companhia de Brasília, a Escola de Teatro Dulcina de Moraes. A peça descrevia a trajetória de Tito de forma linear, partindo de seus primeiros contatos com os movimentos políticos, ainda na Capital; sua entrada na ordem dominicana e o subsequente apoio à guerrilha; a tortura e a morte no exílio. À época, a peça dividiu opiniões da crítica. Elogiadas por uns, foi acusada de ser demasiado simplista ao tratar o conflito entre a Ditadura e seus opositores, além do próprio drama de Tito de Alencar. Em cena, a produção usou recursos como slides, a "edição" com músicas da época e um narrador que dava notícias da época.

Em 14 de setembro de 2005, foi aberta no Museu do Ceará a exposição "Sala Escura da Tortura", para marcar os 60 anos de nascimento de Frei Tito de Alencar. A mostra ficou em cartaz até o 30 de novembro daquele ano. A exposição criava um círculo de imagens fortes, formado por sete quadros de 2 metros cada, trazendo figuras humanas em tamanho natural, reproduzidas em tons de cinza. Quadros produzidos no início da década de 1970, na França, a partir dos relatos do religioso. As obras são assinadas por artistas como os argentinos Julio Le Parc e Alexandre Marco, o uruguaio Gamarra e o brasileiro Gontran Guanaes Netto. O Museu do Ceará ainda mantém a exposição permanente "Memorial Frei Tito", com objetos pessoais do religioso; e lançou o livro "Frei Tito: em nome da memória", de Régis Lopes e Martine Kunz.

Em 2007, o livro de Frei Betto ganhou uma adaptação para os cinemas. Dirigido por Helvécio Ratton, "Batismo de Sangue" trouxe no elenco Daniel de Oliveira (Frei Betto), Cássio Gabus Mendes (Delegado Fleury), Ângelo Antônio (Frei Oswaldo) e Caio Blat (foto), no papel de Frei Tito de Alencar. O filme segue a mesma estrutura do livro, acompanhando o envolvimento dos jovens religiosos com a esquerda. O longa-metragem foi bem aceito pela crítica e incluído em listas dos melhores filmes brasileiros do ano. No Festival de Brasília, o longa-metragem venceu nas categorias "Melhor diretor" e "Melhor fotografia" (Lauro Escorel). Surpreendeu a direção de Ratton, cineasta veterano mais conhecido pelo leve "Menino Maluquinho". Ao contar o drama dos dominicanos, o diretor não economizou cenas fortes, para reproduzir a violência da tortura.
 
BIOGRAFIA
"Morrer para viver"

Ben Strik
Tradução: Dolly Jurrius e João Bosco Feres
716 páginas
2009
BRASILHOEVE
Lançado em 22/10/2010 no Museu do Ceará
As próprias pedras gritarão
Frei Tito por ele mesmo
Relato da tortura de Frei Tito
Este é o depoimento de um preso político, Frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.
Fui levado do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes", OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.
Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.
Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.
Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.
"Nosso assunto agora é especial", disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. "Quando venho para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo "não" que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber". Eram três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)". Quando respondi: "não sei" recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.
Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento". Disse que a "Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada". Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.
Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.
Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: "o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.
No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.
De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.
É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.
A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo
"Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos" (2Cor, 8-9).
Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.
Frei Tito de Alencar Lima, OP
Fevereiro de 1970
_fonte: Frei Tito – Memorial Online
http://www.adital.com.br/freitito/por/pedras.html#
Frei Tito: "Morrer para Viver"
Este é o título do livro de Bernard (Ben) Strik sobre a Luta do Frei TITO DE ALENCAR contra a ditadura militar. O Prefácio é do Frei Betto, companheiro do Frei Tito na mesma luta.
Ben Strik foi missionário no Brasil durante 20 anos, realizando trabalhos de apoio ao movimento popular no nordeste, no sudeste e na Amazônia. De retorno à sua pátria (Holanda), criou o "Brasil op Weg" (Brasil caminhando), uma ONG formada para levar o conhecimento do que se passava no Brasil, naqueles anos de chumbo, às comunidades católicas e protestantes holandesas. Traduzia canções brasileiras – cerca de 150 – para sua língua pátria e as cantava nas comunidades. Com isso, tornou conhecido o Brasil, a ditadura e seus crimes e conseguia ajuda financeira para dezenas de trabalhos de base por ele apoiado.
Sabendo da morte do Frei Tito, e conhecendo sua vida através da família Alencar e de muitas e incansáveis pesquisas, dedicou-se a escrever o livro, tendo como pano de fundo a história da colonização do Brasil, as lutas do povo e os crimes da ditadura. Foram vários anos de trabalho árduo.
O livro está à venda no Brasil em várias cidades. Em São Paulo, está sob os cuidados da Pastoral Operária da arquidiocese (11) 3106-5531 (com Lucas o Cidinha), assim como deste que vos escreve. Seu preço? R$ 40,00. Pagas as despesas com a edição do livro, o demais Ben Strik está destinando à compra da casa onde Frei Tito nasceu, que será o museu sobre sua vida, luta e morte.
Se alguém quiser adquirir o livro entre em contato. (Waldemar Rossi – walderossi@gmail.com)
 Sobre o autor 
Ben Strik é holandês. Nasceu em 1923 e lutou contra os nazistas alemães na Segunda Guerra Mundial. Tornou-se sacerdote salesiano de Dom Bosco e trabalhou 22 anos no Brasil. A descoberta de semelhanças marcantes entre a vida dele e a de Frei Tito de Alencar Lima, deu a Ben Strik a idéia de fazer ouvir as razões que o levaram a dar sua vida por seus compatriotas oprimidos e abandonados. 
Ao mesmo tempo, Ben Strik apresenta Frei Tito como um exemplo para todos os jovens do mundo, que, igualmente como ele, querem lutar por uma sociedade mais justa.
Encomenda e Informações 
Editora “Brasilboeve”, Holanda 
Paperback 2009-09-11 
*Parte da renda será para abrir um museu em honra de Frei Tito em Fortaleza
_fonte: Instituto Zequinha Barretohttp://zequinhabarreto.org.br/?p=5131
*_vídeoImagens do filme Frei Tito e Carlos Marighella e música Sentinela - Miton Nascimento e Nana Caymmi
 FREI TITO DE ALENCAR LIMA (1945 ... 1974)
Número do processo: 126/04
Filiação: Laura Alencar Lima e Ildefonso Rodrigues Lima
Data e local de nascimento: 14/09/1945, Fortaleza (CE)
Organização política ou atividade: ALN
Data e local da morte: 07/08/1974, França
Relator: Maria Eliane Menezes de Farias
Deferido em: 10/08/2004 por unanimidade
Data da publicação no DOU: 17/08/2004

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